Uma cruzada pela verdade na discussão entre homossexualidade e religião
Por Renata. 26 anos, lésbica, jornalista e mestre em literatura inglesa.
Florianópolis, SC, Brasil.

O filme começa com uma cena clássica da Anita Bryant, uma religiosa fanática que fez campanha contra homossexuais nos anos 70, levando uma tortada na cara (quem viu Milk vai lembrar dela). Isso já é em si só uma amostra de quanto os ânimos se acirram quando a questão religião e homossexualidade começa a ser discutida em qualquer lado da balança. Em seguida vemos e ouvimos vários trechos de sermões e discursos do naipe de "Estamos destruindo o alicerce da sociedade", "Este país está fazendo de tudo para fazer as pessoas acreditarem que é ok ser gay. Quando não é. Por isso Deus destruiu Sodoma e Gomorra e por isso Deus vai destruir este país", misturados com imagens de passeatas por direitos gays e paradas.

Ok, mas continuando sobre o filme (estou revendo pela quarta vez pra escrever o post e já estou com lágrimas nos olhos). As histórias são contadas através das perpectivas de cinco famílias religiosas que tiveram que lidar com um filho gay ou uma filha lésbica. Aos poucos vamos nos familiarizando com esses personagens, com essas famílias que sofreram e ainda sofrem tentando aceitar a ideia de que um dos seus filhos queridos também é um dos que a Bíblia condena como uma abominação. Como fazer para conciliar seu amor por um membro estimado da família com a convicção de que a Bíblia classifica ela ou ela como não naturais?

Acho que o filme já começa desafiando essa questão de diferença. Os gays não são colocados como diferentes, e tampouco os religiosos. Ao invés de contar a história de um ponto de vista "nós" versus "eles", "homossexualidade" versus "Bíblia", "gays" versus "religiosos", como se fossem lados opostos em uma batalha, o filme nos conta as histórias de quando não há o diferente, nem de um lado nem de outro. Quando os dois lados fazem parte da mesma família. A ideia do filme é fugir dessa polarização e lidar com o assunto da melhor maneira, de uma maneira humana.

A próxima família a ser apresentada é a dos Poteats. A fala que mais me marcou nos relatos dessa família é a do pai quando fala que rezava a Deus para seus dois filhos, um menino e uma menina. Que o menino não virasse uma bixa, e que a menina não se transformasse numa vadia. A grande ironia de acordo com ele é que Deus ouviu as preces dele. Foi a filha que se revelou lésbica... (Sempre achei que foi exatamente o que aconteceu com meu pai...) Homossexualidade era uma coisa que ele nunca esperaria que acontecesse comigo, justo a filha menina (acho que as pessoas quando pensam em homossexualidade acabam lembrando só dos gays mesmo tsc tsc). Em seguida os Reitans, que tem um filho adolescente gay, são apresentados e logo depois os Gephardts, que tem uma filha lésbica.
Depois que as primeiras quatro famílias são brevemente apresentadas o documentário foca um bom tempo na palavra "abominação", que é como a Bíblia descreve atos homossexuais em algumas passagens tais como Levítico 20:13. As entrevistas com as pessoas na rua mostram o quanto de ignorância há por trás da ideia do que exatamente a Bíblia fala, já que muitos nunca leram as tais passagens que condenam a homossexualidade. Na passagem citada o que acontece é que ao mesmo tempo em que classifica um homem deitar com outro homem como abominação, um pouco antes também classifica a ingestão de frutos do mar como tal, e um pouco abaixo condena misturar mais de uma semente na mesma plantanção como abominação. A leitura literal de apenas um verso fora de contexto é o mal que aflige aqueles que usam a Bíblia para justificar seus preconceitos, conforme vários teólogos entrevistados.

"Amor incondicional" fala Dick Gephardt (um político proeminente do partido democrata americano), pai de Chrissie. Ele resume bem o sentimento que precisa ser redescoberto para que haja a aceitação. Chrissie teve muita sorte, seus pais a aceitaram imediatamente e a asseguraram que seu amor continuaria o mesmo e que a apoiariam sempre. Com certeza algo que muitos de nós ainda esperam ouvir. Já aviso que às vezes demora um pouco, como no meu caso e a dos outros no documentário.
Foi o caso de Jake, da família Reitan. Seus pais não sabiam como lidar com a situação e procuraram o apoio de um pastor parente deles que os aconselhou a não aceitar o filho como homossexual, que ele poderia mudar e que o faria com a ajuda da igreja e deles. Sugeriu que algumas pessoas passam por fases na vida onde sentem atração pelo mesmo sexo e que talvez fosse o caso com Jake, que ainda era adolescente. Eu pergunto a todos os pais com filhos gays ou quaisquer outras pessoas com essa ideia: será que é realmente plausível que alguém escolha voluntariamente passar por esse tipo de sofrimento por um sentimento passageiro? Eu pergunto pra quem acha que ser gay ou lésbica é questão de escolha, de "estilo de vida": quem escolheria sofrer preconceito diariamente? Se fosse uma escolha realmente, quem escolheria isso? Quem escolheria o medo de ser rejeitado pelos próprios pais? É claro que não temos escolha, nascemos assim e somos obrigados a enfrentar uma sociedade inteira para termos uma chance de ser felizes. Eu acho que cada um de nós deveria receber um prêmio, só pela coragem de assumir ser algo diferente do que a sociedade dita para você.
O que alguns programas religiosos ditam é que homossexualidade é uma escolha e que o que você deve fazer para "salvar" seu filho é não aceitá-lo. Isso é a pior coisa que se pode fazer numa hora dessas, diz uma psicóloga no documentário. É justamente o período mais frágil na vida de alguém e pode ser devastador ser rejeitado pelas pessoas que você mais depende. A história da quinta família no documentário mostra isso claramente. A mãe, Mary Wallner, conta como rejeitou sua filha , como usou as passagens da Bíblia para dizer as coisas muito pouco amáveis como "eu te amo, mas sempre vou odiar isso em você", na maneira que julgava correta pelas intruções da igreja.
Isso afastou Anna, a filha, cada vez mais até que ela cometeu suicídio. Infelizmente essa é uma realidade no nosso mundo, gays e lésbicas são três a sete vezes mais propensos a cometer suicídio, e essa taxa aumenta ainda mais quando se trata de adolescentes. Acho que as pessoas não conseguem entender inteiramente o que é sentir solidão por completo, o que é sentir-se o único no mundo. O que é sentir-se realmente só. Um dos entrevistados que trabalha numa ONG de prevenção ao suicídio do estilo do CVV diz que uma das cinco maiores razões para os jovens ligarem para pedir apoio é por razões religiosas. O que a Igreja faz é criar um mundo onde a pessoa se sente ainda mais só, como se nem Deus aprovasse da sua existência, como se não houvesse maneira de conciliar fé e homossexualidade. Um mundo onde a primeira resposta é o ódio a si mesmo, é a falta de aceitação de si mesmo. Um mundo onde há o medo de falar com os pais, com os professores, com os líderes religiosos, com os amigos, etc.
E o que acontece também é que se cria um mundo onde a violência contra gays e lésbicas é justificada pela Bíblia. Assim como a Bíblia foi erroneamente usada para validar escravidão, opressão contra as mulheres, apartheid, anti-semitismo, e asim por diante, hoje é usada para justificar preconceito com a população LGBT. Nós somos o novo "outro". O clima político é um em que a violência contra gays e lésbicas é tida como um ato divino, alguém fazendo a vontade do Senhor. A mensagem de amor e compaixão expressa na Bíblia fica perdida em meio à alienação do preconceito.
"Minha crença teológica é que todas as relações baseadas em amor são honradas por Deus" diz um dos entrevistados. Amor é um sentimento divino, como poderia ser condenado por Deus? Em que realidade seria plausível que Deus condenasse um amor tão puro quanto qualquer outro? "Jesus sempre abraçou os excluídos, como alguém usaria suas palavrar para excluir um grupo de pessoas e se proclamar cristão não faz sentido para mim" diz outra entrevistada. Amor, inclusão, compaixão: esses são os sentimentos ensinados por Jesus. Onde as pessoas encaixam preconceito dentro disso não entendo.
Um rabino entrevistado lembra que na Bíblia um homem adquiria sua mulher. Não fazemos mais isso, diz ele. O conceito de casamento mudou desde aquela época, completa. Então porque será que as pessoas tem tanto medo de redefinir o que é o casamento? Dizem que a legalização das uniões gays irá redefinir o que significa casamento. E daí? É o que se faz com o passar do tempo, se redefinem as coisas. O conceito de casamento vem mudando há séculos, justamente agora significará o fim da sociedade? Não era o que diziam do casamento interracial? Do divórcio? Pelo que me consta essas foram redefinições do que é casamento e ainda continuamos aqui, o mundo ainda não acabou.
"Eu não consigo imaginar, por mais que tente que Deus puna as pessoas dessa maneira. Eu vou te punir porque você é negro, você deveria ter sido branco. Eu vou te punir porque você é mulher, você deveria ter sido homem. Vou te punir porque você é homossexual, você deveria ter nascido heterossexual. Não consigo realmente imaginar que seja assim que Deus veja essas coisas." Desmond Tutu, arcebispo e nobel da paz pela sua luta contra o Apartheid.

Fonte: Oráculo de Lesbos
-
Nenhum comentário:
Postar um comentário